O FILHO DE DEUS
Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho*
O Apóstolo Bartolomeu, chamado Natanael, verdadeiro israelita, caracterizado por Jesus como “um homem sem falsidade” (Jo 1,47), assim se dirigiu a Cristo: “Rabi, tu és o Filho de Deus, tu és o rei de Israel”. Esta saudação dirigida ao Mestre Divino, repleta de verdade e sinceridade, pode parecer um tanto quanto triunfalista, motivo pelo qual oferece uma reflexão profunda sobre o relacionamento do cristão com seu Salvador. A fé arraigada nele, que é Deus com o Pai e o Espírito Santo, Rei de todos os povos, não nos pode jamais fazer perder de vista que Ele é o Cordeiro Imolado, Crucificado um dia, para regeneração de todos. O grande equívoco de São Pedro no episódio da Transfiguração foi que ele, deslumbrado, imerso num júbilo nunca dantes experimentado, já queria ficar definitivamente no Tabor. Ele aprenderia, depois, que aquele Jesus deveria passar primeiro pelo Calvário, para depois, enquanto homem, entrar na glória perene junto do Pai. O próprio São Pedro muito teria que sofrer. É que, em Cristo, Deus se revestiu do sofrimento da condição humana. Eis porque as feridas, os sofrimentos e até a morte se transformaram de impasses que eram em portas abertas para a verdadeira vida. Na humanidade divinizada de Jesus as dores se tornariam, num sublime paradoxo, um bálsamo para quem nele crê. O profeta Isaías entreviu esta realidade com rara precisão e proclamou: “No entanto, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e carregou-se com as nossas angústias. Nós o julgávamos açoitado e ferido por Deus e humilhado, mas foi transpassado por causa dos nossos delitos [...] por suas feridas nós encontramos a cura” (Is, 53,4-5). A liturgia fixa esta realidade de uma maneira maravilhosa na Vigília Pascal. Com efeito, à véspera da grande vitória de Cristo, vencedor glorioso da morte, quando Ele daria a prova definitiva de que é realmente o Filho de Deus, como o proclamou São Bartolomeu, e mostraria o esplendor de sua majestade, no círio pascal que O representa é gravada uma cruz com a ajuda de um estilete e cinco grãos de incenso odorante são incrustados nesta cruz, representando as cinco chagas. Recita-se simultaneamente esta significativa prece: “Pelas suas santas chagas gloriosas que o Cristo Senhor nos guarde e nos proteja”. Esta maravilhosa teologia do círio diz algo de muito importante sobre nossos próprios sofrimentos. Em razão da morte e da ressurreição de Jesus, feridas, fracassos, deficiências, até mesmo a morte, tudo encerra um potencial oculto de revelação do fundamento mais profundo do cristão em Deus. Nossas feridas exalam o rastro aromatizante da presença divina. O ser humano tem uma forte tendência a recuar diante das angústias existenciais, detestando-as, sem as metamorfosear em momentos de progresso espiritual. O Cristo verdadeiro que se manifesta na vida do cristão se distingue daquele que muitos, de uma maneira vã, tendem a admirar e a idolatrar em si mesmos, ou na linguagem de Bartolomeu o rei de Israel, repleto de pompa e majestade. Na verdade, porém, o Jesus que se deve encontrar a cada passo é Aquele que tomou sobre si a miséria e o sofrimento humanos, nossa pobreza e nossas deficiências. Não se depara jamais a autêntica paz interior, o repouso absoluto, se esta cegueira espiritual não é superada para que se possa conviver com os conflitos de cada instante. Apenas quando se presta atenção no sentido profundo do crucifixo é que se atinge o equilíbrio total, porque nele se vislumbram os ecos de seu triunfo sobre o sofrimento após sua gloriosa ressurreição. Foi o que entendeu admiravelmente o Apóstolo Paulo que afirmou aos Gálatas: “Quanto a mim, jamais suceda que eu me glorie a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está para mim crucificado, como eu para o mundo” (Gl 6,14). Acrescentou depois na carta aos Coríntios: “Nós pregamos Cristo crucificado” (1 Cor 1, 23). Falava com experiência, porque declarou: “Foi-me posto um espinho na carne” (2 Cor 12,7) com o qual penou durante muito tempo. Ele chegou mesmo a dizer que “ a este respeito, três vezes invoquei o Senhor, para que o afastasse de mim. Mas ele respondeu-me: “Basta-te a minha graça, pois é justamente na fraqueza que a força da graça mostra a sua potência”. São Paulo entendeu bem a mensagem recebida e pôde acrescentar: “É, pois de boa vontade que me ufanarei de preferência das minhas fraquezas, para que a força de Cristo habite em mim. Por isso sinto prazer nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por Cristo. Porque quando sou fraco, então é que sou forte (2 Cor 12, 9-11). É que, quando se compreende plenamente a Jesus, tudo se modifica e os espinhos da vida se transformam em pérolas para a eternidade. Proclamemos, de fato, com São Bartolomeu que Jesus é o Filho de Deus, o Rei de Israel, mas não nos esquecemos nunca de que Ele, como apregoa a Liturgia, “regnavit a ligno”, reinou do alto da Cruz. Mais tarde Bartolomeu conheceria também ele esta realidade uma vez que morreu martirizado. * Professor no Seminário de Mariana durante 40 anos.
terça-feira, 2 de agosto de 2011
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