BEM-AVENTURADOS OS MISERICORDIOSOS
Côn. José Geraldo Vidigal de
Carvalho*
A intenção de Jesus
ao proclamar bem-aventurados os misericordiosos é fazer com que seus seguidores
cresçam sempre mais na clemência num esforço consciente. É evidente que apenas
pela graça divina este empenho leva, de fato, a um crescimento interior
profícuo. Há necessidade de um contínuo combate ao egoísmo deletério. Deve-se,
contudo, partir da compreensão de si mesmo, dado que não pode o cristão se
entregar a um estado de aflição íntima diante de suas falhas humanas.
Reconhecidas estas fraquezas e delas se penitenciando, inicia-se a caminhada
para fora de si mesmo rumo à preocupação com o próximo, merecedor de compaixão,
Neste caso uma atitude sensível diante da conduta dos outros ajuda, e muito,
inclusive o sistema neurofisiológico que fundamenta nossa existência biológica.
Deste modo, um discípulo de Jesus bem estruturado pode usufruir dos benefícios
espirituais da misericórdia. É uma desgraça se entregar à morte afetiva. O
sentimento de compaixão conduz às regiões da sensibilidade e, partindo das
emoções, abre espaço para a expansão dos atos da caridade. Eis porque, cada um
precisa ser, no sentido mais profundo, cuidadoso o seu respeito. Aqui vale o
conselho socrático: “Conhece-te a ti mesmo”. Então, se entenderá melhor a
determinação de Cristo: “Sede misericordiosos como o Pai celeste é
misericordioso”. Verifica-se um triângulo salutar, ou seja, o ser humano
misericordioso consigo mesmo imita o Pai que está nos céus e multiplica ações
misericordiosas para com o próximo. Não ocorre um processo linear, mas circular
de efeitos admiráveis. Longe de se fazer
vítima de suas misérias, o cristão não se martiriza perante seus erros, mas
entra numa rota de revisão de vida olhos fixos no oceano infinito de bondade
que é o Senhor do universo. Passa naturalmente então a olhar os outros com
comiseração. Surgem, desta maneira, as obras de misericórdia temporais e
espirituais. As
obras de misericórdia corporais são: dar de comer a quem tem fome, dar de beber
a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir os
enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. As espirituais são: dar bom
conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os aflitos,
sofrer com paciência as fraquezas do próximo, rogar a Deus pelos vivos e
defuntos. Quaatorze extraordinários degraus na ascensão rumo à perfeição
cristã. Quem as pratica se vê guindado a uma transformação maravilhosa de si
mesmo e dos outros com quem convive. A solidariedade se torna, em consequência
uma fraternidade responsável. Mais do que um mero perdão cria-se um vínculo
profundo que salva e redime. Brilha a compaixão ativa, eficiente, prática.
Dentro desta consideração cintila a veracidade dos dizeres de Jesus:
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. O
resultado é imediato. Tudo se dá a nível da cordialidade consigo mesmo, à luz
da bondade infinita do Criador, envolvendo os semelhantes nas ondas da
serenidade. Nem sempre se capta esta realidade, porque não se atina com a
etimologia da palavra misericórdia que é composta pelos termos miseratio
e cordis, derivado de cor que significa coração. Entende-se
então porque São Paulo pedagogicamente
aconselhou aos Romanos a serem mutuamente carinhosos, “adiantando-vos uns aos outros na estima recíproca” (Rm
12,1). É
que a chave da misericórdia é o
trabalho que faz crescer em si a inteligência do amor mútuo, conduzindo o
cristão a uma relação com o outro situado sempre mais ao nível de sua
necessidade real. Resulta, de fato, uma
solidariedade fraternal da qual fluem ações que tornam o mundo melhor. São Crisóstomo pôde então afirmar que “a misericórdia
é um penhor de salvação, ornato da fé, a propiciação dos pecadores. É ela que
experimenta os justos, robustece os santos e ostenta os amigos de Deus”. São
Leão magno foi taxativo: “Tão elevada é a virtude da misericórdia, que sem
ela as demais não tem utilidade. Porquanto, ainda que alguém seja fiel, casto,
sóbrio e adornado de outras maiores e mais insignes qualidades, se não é
misericordioso, não merece misericórdia”. Cumpre sermoa, realmente, arautos conscientes
do Reino do Deus misericordioso. * Professor no Seminário de Mariana durante 40
anos
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